O ruído em Belle de Jour
Trilha sonora surrealista de Buñuel
José Henrique Nogueira
Mestre em Educação Musical
Musicoterapeuta
Buñuel é um expoente do surrealismo no cinema – os sonhos de Catherine Deneuve interpretando a personagem Séverine no filme Belle de Jour (A Bela da Tarde), expondo de maneira poética seus sentimentos lascivos, sádicos, líricos ou mesmo bizarros, revelam muito mais detalhes do que pretendo aqui descrever. O movimento surrealista tinha a obra de Freud como fonte de inspiração. A busca pela interpretação do inconsciente (fantasias, sonhos e devaneios) no cinema e nas artes visuais, com Buñuel, Dali, Miró, entre outros, era um dos grandes temas dos anos 1960. André Breton dizia que Freud foi o responsável por trazer à luz aquela parte do nosso universo mental à qual “fingíamos” não estar conectados.
Uma escuta mais atenta possibilitará perceber que não há melodia ao longo da película, só ruídos. Os ruídos acompanham as imagens em todos os momentos, principalmente nos sonhos. A ficha técnica do filme apresenta os nomes de Pierre Davoust, René Longuet como técnicos responsáveis pela edição e gravação da trilha sonora, porém, é de se presumir que Buñuel foi quem decidiu não colocar música no filme, para potencializar a trama e também por uma questão estética surrealista.
Buñuel tinha possivelmente muitos amigos ligados à música contemporânea na França. Na época em que foi lançado o filme, 1967, a música concreta, estilo que utiliza a realidade dos fenômenos sonoros, que valoriza os ruídos, apresentando uma nova estética musical, há pelo menos 15 anos já era uma realidade no mundo das artes. Vários compositores tais como: Pirre Schaefer, Pierre Henry, entre muitos outros, tornaram Paris a vanguarda da música concreta. Composições nesse estilo consideradas marcos de uma época são: “Études de bruits “estudo dos ruídos” (1948) de Pierre Schaffer; “Le voile d'Orphee II”, de Pierre Henry. A trilha sonora do filme A Bela da Tarde pode ser pensada como uma ideia contemporânea de música, seus ruídos muito bem gravados participam das cenas nos levando a uma interação “concreta” com o enredo.
A música eventualmente traz à memória imagens variadas, boas e más recordações, grandes amores, férias inesquecíveis. Músicas que continuamos a cantar por toda vida e que de alguma forma fazem parte de nós. No entanto, Freud não fala da música, como é sabido, e há muitas explicações, divagações e até mesmo críticas sobre essa, digamos assim, lacuna em sua obra. Particularmente, gosto do argumento de um amigo que diz: - Freud não teve tempo para falar sobre a arte musical.
Mas o ruído esteve presente em sua obra: o ruído, aquele que interfere, que é um agente provocador de uma fantasia. Sugere a possibilidade cênica de uma escuta sigilosa, do silêncio ruidoso que acompanha a atenção minuciosa aos sussurros ocasionais. O ruído escutado passa a ser o significante, uma imagem acústica, que também é, segundo Freud, a história, a lenda dos pais, dos avós, do ancestral. O ruído secreto que a criança escuta temendo revelar sua presença.
A importância do ruído nas fantasias é abordada por Freud em alguns de seus textos. Num deles, relata o caso da Emmy Von N., uma senhora com aproximadamente quarenta anos. Ela passou a se incomodar com os ruídos depois de ter de permanecer em silêncio, imóvel, ao lado da cama em que a filha se encontrava enferma. A partir daí, os sons passaram a contribuir nos seus sintomas. "Pode-se ainda presumir que foi seu horror ao ruído produzido contra sua vontade que tornou traumático aquele momento e fixou o ruído em si como um sintoma mnêmico somático de toda a cena.
Num outro texto, de 1915, sua paciente, na cama com seu amante, afirma ter se assustado “com um ruído, uma espécie de pancada ou estalido, vindo da escrivaninha, junto à janela”. A partir do ruído e somado ao fato de ter visto, ao sair da casa, um indivíduo carregando uma pequena caixa, ela passou a ficar preocupada com a possibilidade de a caixa ser uma máquina fotográfica. Criou então a fantasia de ter sido fotografada em flagrante com seu amante. Freud vê ,nesse caso, o ruído como o disparador de toda a cena. "O ruído acidental, assim, desempenhou meramente o papel de um fator provocador que ativou a fantasia típica de estar sendo ouvida sem saber.”
Para quem não percebeu, a trilha sonora no filme Belle de Jour, para este ela, a trilha, cumpriu seu objetivo, interferindo de maneira subliminar, intensificando as imagens, o roteiro, as interpretações. Ela fez parte do conjunto de informações sensoriais que só o cinema é capaz de oferecer. Os ruídos incidentais, imprevisíveis, ocultos, que percorrem as cenas, como o som de carruagem, miados de gatos, sinos, mugidos, vários ambientes sonoros (cidade, campo, burburinhos, etc.), fazem parte do cotidiano, da mesma forma que a história de Kessel levada para o cinema por Buñuel também faz. A Bela da Tarde é um filme repleto de detalhes que merecem sempre muita atenção. Espero ter contribuído para despertar a curiosidade de assistir novamente esse filme e conferir o quanto ele continua ruidosamente atual e belo.